2007/09/11

Estilhaços de vida

Este tipo de assuntos, relativos a um acordo geral de paz, era uma porção menor das discussões. O que os palestinianos queriam era catalogar as ofensas e as injustiças de que eram normalmente alvos. Numa visita a Gaza, fomos recebidos por uma família proeminente que tinha actividades agrícolas e de comércio internacional, além de outros negócios. Ficámos a saber que, depois de um dos filhos ter, recentemente, feito uma declaração crítica sobre a ocupação israelita, cinco dos camiões de transporte de laranjas do pai tinham sido imobilizados quando atravessavam a ponte Allenby para a Jordânia, ficam ali parados durante cinco dias - até a fruta ter apodrecido. A quantidade que tranportavam era uma parte muito grande da colheita do ano. O pai mostrou-nos os camiões, parcialmente descarregados, e disse-nos que estava a tentar oferecer as laranjas estragadas para alimentar gado.
Alguns mostraram-nos as ruínas das casas em que tinham vivido e que foram demolidas por bulldozers israelitas e também por dinamite, com Israel a argumentar que elas tinham sido construídas demasiado perto dos colonatos israelitas, em propriedades que o governo israelita necessitava ou que algum membro da família era uma ameaça à segurança.
Analisando estes argumentos, a B'Tselem, organização israelita de defesa dos direitos humanos, explicou que, em média, doze famílias inocentes perdem as suas casas por cada pessoa que é acusada de participar em ataques contra Israel, sendo que quase metade das casas destruídas nunca tinham sido ocupadas por ninguém que estivesse sob suspeita de envolvimento em qualquer acto violento contra Israel, incluindo apedrejamento.
Contrariamente ao argumento das Forças de Defesa de Israel, apresentado no Supremo tribunal, de que só em casos extraordinários é que os proprietários das casas não eram previamente avisados, os números da B'Tselem indicavam que esse aviso era feito em menos de três por cento dos casos. Além das demolições punitivas, Israel tinha arrasado ainda mais habitações de palestinianos em operações se «limpeza», além das casas que Israel garantia terem sido construídas sem autorização. Esta destruição verificava-se em todo o território palestiniano. E a B'Tselem concluía: «A política israelita de demolições punitivas consitui uma violação do direito humanitário internacional e é, por isso, um crime de guerra. Através de muita ginástica legal, o Supremo Tribunal de Justiça de Israel tem conseguido evitar que os tribunais analisem esta questão, o que serve de visto para que Israel prossiga a sua política ilegal.».
Rosalynn visitou o maior hospital de Gaza, onde os médicos lhe disseram que tinham grande dificuldade em arranjar transporte para doentes em estado crítico. Mostraram-lhe uma fila de ambulâncias, que tinham sido oferecidas por um país europeu, e contaram-lhe que não as podiam usar. Um médico disse-lhe que as autoridades israelitas se recusavam a emitir chapas de matrícula porque o chassis tinha mais 30,48 cêntimetros do que a medida legal. (...)
Muitos palestinianos salientaram que estavam privados dos seus direitos humanos mais básicos. Não podiam reunir-se em paz; não podiam viajar sem restrições ou ter propriedade sua sem medo de a verem confiscada por meio de uma multidão de artifícios legais. Como povo, eram marcados pelos funcionários israelitas como terroristas e mesmo as mais pequenas manifestações de desagrado lhes valiam os castigos mais severos por parte das autoridades militares. Afirmavam que o seu povo era preso e mantido na prisão por largos períodos, sendo alguns torturados para serem obtidas confissões à força, enquanto outros executados e os julgamentos realizados com os acusadores a fazerem de juízes. Aos seus próprios advogados não era permitido defendê-los nos tribunais israelitas e os recursos eram caros, sofriam grandes atrasos e tornavam-se habitualmente infrutíferos.
Disseram-me também que qualquer manifestação contra os maus tratos israelitas tinha como resultado prisões em massa de palestinianos, incluindo crianças que se limitavam a atirar pedras, transeuntes que não estavam envolvidos nos acontecimentos, famílias dos que protestavam e todos aqueles que eram conhecidos por fazerem declarações depreciativas sobre a ocupação. Uma vez encarcerados, pouca esperança tinham de um julgamento justo e, na maior parte dos casos, não tinham sequer acesso às suas famílias ou ao apoio de uma advogado. Se fossem acusados, os crimes invocados eram geralmente descritos em termos muito gerais, como sendo equivalentes a «perturbar a paz», e as sentenças, na sua maioria, vagas. (...)
Estes palestinianos estavam convencidos de que alguns dirigentes políticos israelitas estavam a tentar, através destas acções hostis, obrigar os muçulmanos e os cristãos dos territórios ocupados a um êxodo muito mais vasto. Garantiram que não podiam ser vendidos em Israel produtos manufacturados ou agrícolas que entrassem em concorrência com os produtos israelitas, pelo que todos os excedentes tinham de ser ofercidos, deitados fora ou exportados para o Jordânia. A fruta, as flores e os vegetais perecíveis pertenecentes às famílias mais activistas eram mantidos imobilizados na Ponte de Allenby até apodrecerem e, em algumas zonas, os agricultores não podiam substituir as árvores de fruto que morriam nos seus pomares. A queixa mais agustiante que faziam referia-se aos muitos milhares de oliveiras antigas que estavam a ser cortadas pelos israelitas. O acesso à água era outro problema permanente. Cada colono israelita usa cinco vezes mais água do que um palestiniano seu vizinho, que, no entanto, deve pagar quatro vezes mais por uma medida de quatro litros e meio. Mostraram-nos fotografias de piscinas israelitas próximas de aldeias palestinianas, onde a água potável tinha de ser transportada em autotanques e distribuída através de baldes. Muitos colonatos instalados nos montes estavam situados em pequenas zonas de terra e os esgotos, que não tinham tratamento, eram descarregados directamente para os campos e para as aldeias em redor.
Os professores e os pais mantinham que as escolas e as universidades eram frequentemente fechadas, sendo os educadores presos, as livrarias fechadas a cadeado, os livros das bibliotecas censurados e os estudantes deixados na rua, ou em casa, durante longos períodos e sem trabalho. Queixavam-se também que qualquer altercação séria entre estes jovens, ociosos e irados, e as autoridades militares podia ter como resultado o envio de bulldozers para destruir mais casa. (...)
Uma das injustiças mais amargas era o facto de o auxílio externo proveniente de países árabes e mesmo os fundos enviados pelo governo americano para fins humanitários serem interceptados pelas autoridades e usados para benefício dos israelitas, até para a construção de colonatos nas comunidades palestinianas. Os nossos interlocutores afirmaram que o governo se tinha apropriado dos fundos da Agência dos estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (US Agency for International Development, USAID) destinados a um centro para crianças deficientes mentais, em Gaza, e que também estava a ser retido o dinheiro jordano e de outros países árabes, destinado a fins educativos e ao desenvolvimento de uma indústria aviária em algumas comunidades mais pobres da zona ocidental. (...)
Muitas das respostas de Israel foram francas e directas, porém houve uma excepção: a intercepção do dinheiro internacional do dinheiro internacional destinado ao auxílio humanitário, feita pelos israelitas, que diziam que parte dessas verbas confiscadas podiam ter sido desviadas para financiar acções de terrorismo árabe e que o controlo israelita seria suficiente para evitar abusos que ameaçassem a paz. Também aceitaram a preocupação relativa à produão avícola excedentária, às laranjas, flores, uvas, azeitonas e outros produtos agrícolas, oriundos da Margem Ocidental e de Gaza, que pudessem prejudicar a economia agrícola dos israelitas. Não fazia sentido que o dinheiro fosse utilizado para aumentar essas produções. Foi-me dito que alguns fundos da USAID, considerados adequados pelo Congresso dos EUA para projectos de beneficiência, eram guardados pelo governo israelita para evitar que fossem mal gastos, mas este dinheiro não era utilizado para contruir colonatos no território ocupado.
(...) Mais tarde, recebi uma informação de Meron Benvenisti, um israelita que tinha sido vice-presidente da Câmara de Jerusalém e que tinha dedicado todo o seu tempo a fazer uma análise completa das políticas de Israel nos territórios ocupados. Com mapas e quadros, explicou-me que os israelitas se apropriavam de terras da Palestina de várias maneiras: compra directa; posse «para efeitos de segurança, enquanto durar a ocupação»; invocando o controlo estatal de zonas anteriormente mantidas pelo governo da Jordânia; invocando tradições árabes ou leis antigas cuidadosamente escolhidas; reivindicando como terra pertencente ao Estado tudo o que não estava cultivado ou especificamente registado em nome de uma família palestiniana. E porque a ausência de cultivo ou de uso para a agricultura é um dos critérios para afirmar que a terra é do Estado, tornou-se política oficial, em 1983, a proibição, sob pena de prisão, de os palestinianos poderem, nestas zonas, ter pastos, plantar árvores e fazer colheitas. As vastas zonas de que o estado tomava posse, por razões de «segurança», tornavam-se colonatos civis. Eram estas, aparentemente, as origens de algumas queixas que tinha ouvido.


Jimmy Carter - in Palestina. Paz, sim. Apartheid, não. Os meus encontros com os palestinianos.


[Em Setembro de 2007, o Supremo Tribunal israelita tomou esta decisão inédita.]