2007/12/05

"(já não há sapateiros na Assembleia!)"

«A viragem das eleições para a Legislativa será, a este respeito, decisiva, pois elimina a quase totalidade dos antigos privilegiados. É então entre os plebeus do antigo terceiro estado que se recruta a massa dos deputados. Nas duas Assembleias, os representantes dos grupos populares não têm lugar, a burguesia domina. A polémica outrora travada pelos historiadores anglo-saxónicos sobre os contornos desta "burguesia" é agora obsoleta: ninguém contesta que a burguesia produtora dos negociantes ou dos empresários está aí discretamente representada. Advogados, gentes da lei, "togados" como então se dizia, ocupam um lugar hiperatrofiado nas duas Assembleias, reforçado ainda na Legislativa, dando crédito à expressão desdenhosa de uma Revolução "de advogados e sapateiros" (mas já não há sapateiros na Assembleia!).»

Michel Vovelle - in A Revolução Francesa, 1789-1799, A monarquia constitucional.


«Nunca uma classe foi mais criticada e atacada do que a Burguesia, desde que começou a afirmar-se, a preponderar de-facto e sobretudo desde que, pelo triunfo político, prepondera de direito na vida social. Mais atacado do que a burguesia só o componente da classe, o indivíduo a que chamamos burguês. Neste caso, é o homem mais mal visto do que a classe a que pertence. (...) O sentido pejorativo da palavra burguês, estendeu-se a todos os aspectos odiosos ou ridículos da pessoa, dotando o burguês de uma psicologia tal, que não há defeito que êle não tenha nem qualidade que êle não transforme em defeito. Diz-se mal do burguês agora; disse-se mal dêle há trinta, cinqüenta, cem e duzentos anos; e sempre o indivíduo foi mais maltratado do que a classe. (...) Gente que nada sabe da burguesia, que não faz ideia do que essa palavra significa, diz mal do burguês, empregando o têrmo para injuriar, amesquinhar ou ridicularizar alguém.
É de Gustavo Flaubert, ou é-lhe atribuída a conhecida definição: "É burguês, para mim, todo aquêle que pensa bassement", (não é muito fácil a tradução) o que pensa inferiormente, grosseiramente, sem elevação. A definição é dum intelectual, que por êsse lado rebaixou o burguês; e como era uma boutade, fêz fortuna. (...) Vê-se bem que Flaubert não fêz mais do que manter, numa frase de espírito (que não resiste à mais ligeira análise), a ideia corrente sôbre o burguês, que êle, como tantos, como quási todos nós, aceitou, perfilhou sem mais reparo, como verdade assente, com a verificação da qual se não perde tempo.»

Emílio Costa - in Ascensão, Poderio e Decadência da Burguesia, Cadernos da «Seara Nova», Secção de Estudos Políticos e Sociais, 1939