2008/02/26

A frugalidade com que os poderes e faculdades nos são distribuídos.

«No sentido de curar a maior parte dos males da vida humana, não peço que o homem tenha as asas da águia, a velocidade do veado, a força do touro, os membros do leão, as escamas do crocodilo ou do rinaceronte; muito menos peço a sagacidade de um anjo ou de um querubim. Fico satisfeito por ter um aumento num simples poder ou faculdade da sua alma. Deixem-no ser bafejado com um maior propensão para a indústria e labor, uma dinâmica e actividade mental mais vigorosas, uma inclinação mais constante para negócio e aplicação. (...) Quase todos os males morais, bem como os males naturais da vida humana sugem da indolência e fosse a nossa espécie, pela constituição natural da sua estrutura, isenta deste vício ou enfermidade, seguir-se-ia imediatamente o perfeito cultivo da terra, o melhoramento das artes e manufacturas, a exacta execução de qualquer dever e ofício e as pessoas poderiam alcançar rapidamente aquele estado de sociedade que é atingido tão impefeitamente pelo governo melhor regulamentado. Mas como a diligência é um poder, e o mais valioso de todos, a natureza parece determinada, de acordo com as máximas habituais, a concedê-la ao homem com uma mão bem avara e, em vez de recompensá-lo pelas suas realizações, a preferir puni-lo severamente pelas suas deficiências neste campo. (...) Aqui, os nossos pedidos podem ser ditos muito humildes e, por conseguinte, os mais razoáveis. Se pedíssemos os dons do juízo e discernimento superior, de um gosto de beleza mais delicado, de uma sensibilidade mais fina para a benevolência e amizade, poder-nos-ia ser dito que pretendemos, por impiedade, quebrar a ordem da natureza, que pretendemos elevar-nos a nós próprios a um grau mais alto do ser, que as dádivas de que precisamos, não sendo adequadas para o nosso estado e condição, só seriam perniciosas para nós. Mas é duro, atrevo-me a repetir, é duro que, tendo sido colocado num mundo tão cheio de exigências e necessidades, onde quase todos os seres vivos e elementos ou são nossos inimigos ou nos recusam a sua ajuda, tenhamos também de lutar contra o nosso temperamento e tenhamos de ser privados daquela faculdade que poderia, só por si, preteger-nos destes crescentes males.»


David Hume - in Diálogos sobre a Religião Natural, Parte XI (Fílon)