2008/02/18

Superlativamente constringido - ei-lo: Deus à imagem e semelhança do Homem.

«O homem, é verdade, pode, por associação, utrapassar todos os seus inimigos reais e tornar-se mestre de toda a criação animal; mas não levanta ele logo imediatamente para si próprio inimigos imaginários, os demónios da sua fantasia, que o caçam com terrores supersticiosos e arruínam qualquer satisfação da vida? O seu prazer, como ele imagina, torna-se aos seus olhos um crime; a sua comida e o seu descanso dão-lhe ressentimento e culpa; o seu próprio sono e sonhos fornecem-lhe novos materiais para medo ansioso; e mesmo a morte, o seu refúgio de qualquer outra desgraça, apresenta apenas o pavor de infindáveis e inumeráveis sofrimentos. Nem o lobo molesta mais a tímida manada do que o faz a superstição ao íntimo ansioso dos desgraçados mortais.
Além disso, tem em conta, Demea, esta mesma sociedade através da qual ultrapassamos aquelas bestas saudáveis, os nossos inimigos naturais: que novos inimigos não levanta ela contra nós? Que sofrimento e miséria não ocasiona ela? O homem é o maior inimigo do homem. Opressão, injustiça, desprezo, violência, insubordinação, guerra, calúnia, traição, fraude; através disto atormentam-se uns aos outros mutuamente e depressa dissolveriam aquelas sociedades que formaram se não fosse o pavor de desgraças ainda maiores os esperarem em caso de separação. (...)
E é possível, Cleanto, disse Fílon, que depois de todas estas reflexões, e de infinitamente mais que poderiam ser sugeridas, ainda possas persistir no teu antropomorfismo e afirmar serem os atributos da Divindade, a sua justiça, benevolência, misericórdia e rectidão, da mesma natureza destas virtudes nas criaturas humanas? O seu poder, concordamos, é infinito; seja o que for que ela queira, é executado, mas nem o ser humano, nem qualquer outra criatura é feliz; logo, ela não quer a sua felicidade. A sua sabedoria é infinita; ela nunca se engana ao escolher os meios para todos os fins; mas o curso da natureza não tende para a felicidade humana ou animal; logo, não está estabelecido para aquele objectivo. Através de todo o alcance do conhecimento humano, não há inferências mais certas e infalíveis do que estas. Em que aspecto, então, é que a sua benevolência e misericórdia se assemelham à benevolência e misericórdia do homem? (...)
Está inclinada a impedir o mal, mas não é capaz? Então é impotente. É capaz, mas não está inclinada? Então é malévola. É ela simultaneamentem capaz e está inclinada? De onde vem então o mal?»

David Hume - in Diálogos sobre a Religião Natural, Parte X (Fílon)


«Não tenho pejo em admitir, disse Cleanto, que tenho estado inclinado a suspeitar que a frequente repetição da palavra "infinito", que encontramos em todos os escritores de teologia, dá mais ideia de panegírico que de filosofia e que quaisquer objectivos de raciocínio e reflexão, e mesmo de religião, seriam melhor servidos se nos satisfizéssemos com expressões mais apuradas e moderadas. Estes termos "admirável", "excelente", superlativamente grande", "sábio" e "santo" preenchem suficientemente a imaginação do homem e nada mais, e para lá de isto levar a absurdos, tem influência nas afeições ou sentimentos. Assim, face ao assunto que nos ocupa, se abandonarmos toda a analogia humana, como parece tua intenção, Demea, receio que abandonemos toda a religião e que não conservemos concepção alguma do maior objecto da nossa adoração. Se mantivermos a analogia humana deveremos descobrir de uma vez por todas que é impossível conciliar a mistura de mal no universo com atributos infinitos e muito menos podemos alguma vez provar os últimos a partir do primeiro. Mas supondo ser o Autor da natureza finitamente perfeito, apesar de ultrapassar largamente a humanidade, pode-se dar então uma explicação satisfatória do mal natural e moral e enquadrar qualquer fenómeno calamitoso. Um mal menor pode pois, então, ser escolhido, no sentido de evitar um mal maior; inconveniências podem ser dominadas, com vista a alcançar um fim desejável; numa palavra, a benevolência, regulada pela sabedoria e limitada pela necessidade, pode produzir justamente um mundo como o actual.»

David Hume - in Diálogos sobre a Religião Natural, Parte XI (Cleanto)