2008/03/05

Direito à cidadania

«(...) o princípio da administração aberta vd. art.º 65.º e art.º 1.º da Lei 65/93, impõe que a Administração paute a sua actividade, entre outros, pelos princípios da transparência e da publicidade de modo a que não só as suas decisões seejam públicas e acessíveis, mas também que o procedimento que as precede possa ser objecto de consulta e informação pois que só assim se promove a formação de uma opinião pública esclarecida e só assim se permite que os interessados conheçam as razões que determinaram os seus actos e as possam sindicar eficazmente. E por isso, como vem sendo dito, na actividade administrativa a regra deve ser a informação e não o segredo. Por isso é que aquele direito vem sendo considerado pela doutrina e jurisprudência como um direito fundamental cujo sacrifício só tem justificação quando confrontado com direitos e valores constitucionais de igual ou de maior valia (...)
Importa, porém, ter em conta que a aplicação destas restrições deve fazer-se com observância dos princípios da necessidade e proporcionalidade (...) e, por outro lado, que essas restrições só são legítimas se não se traduzirem numa injustificada denegação do direito à informação. (...)»
- os negritos não são meus.

Este acórdão, de 17.01.2008, foi proferido na sequência de um pedido de informação formulado por um jornalista à Presidência do Conselho de Ministros e aos Ministérios da Administração Interna, Negócios Estrangeiros, Finanças e Administração Pública, Economia e Inovação, Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Trabalho e Solidariedade Social, Saúde, Educação, Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Cultura e Ambiente, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Regional. A informação solicitada, respeitava à contratação de advogados e/ou juristas externos, nos anos de 2005 e 2006.
O Supremo Tribunal Administrativo decidiu que nenhum dos Ministérios demandados cumpriu o estipulado na lei e condenou a Administração (leia-se, ainda que em termos impróprios, o Governo), que nunca negou expressamente o acesso aos documentos - a arte da evasiva falou, como de costume, mais alto - a dar a conhecer ao jornalista a informação requerida. Andou bem! Mesmo quando foi lembrando os requeridos que a Administração também está obrigada a conformar a sua actuação com o princípio da boa fé. Muitas vezes, reconheço na jurisprudência dos nossos tribunais um conservadorismo tacanho, cúmplice num patético estado de coisas. Não é, definitivamente, o caso. Na minha óptica, o acórdão em questão vale muito mais pelos termos em que fundamenta a sua decisão do que pela decisão propriamente dita. Podia o STA ter chegado à mesma conclusão, argumentando de forma púdica e inconsequente. Ao pronunciar-se como fez, escancarou a porta, há muito aberta, para uma interpretação - e sobretudo para uma aplicação - do direito, mais conforme com a Constituição e, em última instância, com o espírito democrático.
A nossa Administração (só não o sabem os poucos privilegiados favorecidos pela circunstância de nunca se terem visto a braços com a Administração) funciona como um autêntico bully - quase me questiono se os agentes administrativos terão treino específico em métodos de manipulação, coação e intimidação; ou se aqui não será possível aferir também um processo de selecção natural, pelo qual apenas os mais absolutistas passam pelo buraco da agulha. As técnicas de intimadação da Administração assentam num único pressuposto: a falta de informação dos interessados! E não tenhamos grandes veleidades de acreditar que isto se passa no nível 1 da Administração. É transversal. Eu diria mesmo que, quando mais pusilânime o exemplo que vem de cima, mais abundante a dispersão de mini-mes, nas camadas de baixo.
Foi por isso que, já há umas boas semanas atrás, ouvi, exasperada, a Clara Ferreira Alves dizer que o papel do jornalista não é fiscalizar coisa nenhuma. Não me conformo de viver um país onde fazer-se jornalismo é, na maior parte das vezes, escrever umas crónicas (mais ou menos assumidas) sem consequência; ou investigar na estricta medida do necessário para captar a atenção. Não há muito tempo, alguém muito mais experiente que eu, dizia-me que o dia que os nossos jornalistas fizessem jornalismo de investigação (e lembrem-se que estamos ainda a falar de Administração Pública) ou, melhor, o dia que um editor assumisse essa responsabilidade, seria o dia imediatamente anterior ao do início do fim da sua publicação.
E a propósito disto só me lembro da greve dos argumentistas nos EUA. Bastava que uns quantos mortos de fome furassem o bloqueio e os propósitos dos grevistas ter-se-iam gorado. O problema é que, por cá, isso só seria possível se os intervenientes tivessem espírito cívico ou, no mínimo, um outro entendimento da profissão, que não de compagina - de todo - com afirmações como a que referi mais acima.
Em suma, às vezes as boas notícias são menos que isso, porque ainda que se dê a cana, tarde ou cedo, acabamos sempre por concluir que, isso de pescar... é uma grande trabalheira.