2008/03/03

[EU] Hoje sim, [EU] amanhã talvez...

«Então, disse Fílon, como é possível que, sendo a vulgar superstição tão salutar para a sociedade, abundem tanto as histórias das suas consequências perniciosas em assuntos públicos? Facções, guerras civis, perseguições, subversões de governo, opressão, escravatura, estas são as sombrias consequências que sempre operam o seu predomínio sobre as mentes humanas. Se o espírito religioso é alguma vez mencionado em qualquer narração histórica, podemos estar certos de encontrar em seguida os detalhes da miséria que o acompanha. E nenhum período da história pode ser mais feliz ou próspero do que aqueles em que nunca é visto ou ouvido.
A razão desta observação, respondeu Cleanto, é óbvia. A função própria da religião é regular os corações das pessoas, humanizar a sua conduta, infundir o espírito de temperança, ordem e obediência e, como a sua acção é silenciosa e apenas reforça os motivos da moralidade e da justiça, está em perigo de ser sobrevalorizada e confundida com estes outros motivos. Quando se distingue a si mesma e actua com um princípio separado sobre os humanos, separou-se da sua esfera própria e tornou-se apenas uma máscara para a facção e ambição.
E assim será toda a religião, disse Fílon, excepto a do género filosófico e racional. (...) A inferência não é justa, porque as recompensas e punições finitas e temporárias têm uma influência tão grande que, por conseguinte, as que são infinitas e eternas devem ter uma muito maior. Considera, peço-te, a ligação que temos às coisas presentes e o pouco cuidado que temos com objectos tão remotos e incertos. Quando os teólogos fazem declarações contra o comportamento comum e a conduta do mundo representam sempre este princípio como o mais forte que é possível imaginar (que de facto é) e descrevem quase toda a espécie humana vivendo sobre a sua influência e mergulhada na mais profunda letargia e despreocupação acerca dos seus interesses religiosos. No entanto, os mesmos teólogos, quando refutam os seus antagonistas especulativos, supõem ser os motivos da religião tão poderosos que, sem eles, seria impossível a sociedade civil subsistir e não se envergonham de uma contradição tão palpável. (...)»


David Hume - in Diálogos sobre a Religião Natural, Parte XII