2008/05/16

... e eu entre eles

«Posso afirmar que em toda a minha vida nunca, em momento algum, procurei Deus. Talvez por essa razão, sem dúvida demasiado subjectiva, é uma expressão de que não gosto e que me parece falsa. Pensei, desde a adolescência, que o problema de Deus é um problema para o qual nos faltam, neste mundo, dos dados, e que o único método certo para evitar resolvê-lo erradamente, o que me parecia o maior dos males possíveis, era não o colocar. Assim, não o colocava. Não afirmava nem negava. Parecia-me inútil resolver este problema, porque pensava que, neste mundo, a nossa tarefa consistia em adoptar a melhor atitude quanto aos problemas deste mundo, e que essa atitude não dependia da solução do problema de Deus.
Isto era verdade, pelo menos para mim, porque nunca hesitei na escolha de uma atitude; sempre adoptei como única atitude possível a atitude cristã. Por assim dizer, nasci, cresci, permaneci sempre na inspiração cristã. Quando nem o nome de Deus tomava a mais pequena parte nos meus pensamentos, tinha, em relação aos problemas deste mundo e desta vida, a concepção cristã de uma forma explícita, rigorosa, com as noções mais específicas que ela comporta. (...)
Mas acrescentar o dogma a esta concepção da vida, sem a isso ser obrigada por uma evidência, pareceu-me uma falta de probidade. Acreditei mesmo que me faltava probidade ao colocar-me como problema a questão da verdade do dogma, ou até, simplesmente, ao desejar chegar a uma convicção sobre o assunto. Tenho da probidade intelectual uma noção extremamente rigorosa, a ponto de nunca ter encontrado alguém que não me parecesse que a ela faltava em mais do que um aspecto; e receio sempre ter eu própria falta dela.
(...)
Depois do meu ano de fábrica, antes de retomar o ensino, os meus pais levaram-me a Portugal, e aí separei-me deles para ir sozinha a uma pequena aldeia. Tinha, de algum modo, a alma e o corpo em pedaços. (...)
Foi neste estado de espírito, e num estado físico miserável, que entrei, no dia da festa do padroeiro, sozinha, de noite, sob a lua cheia, nessa pequena aldeia portuguesa, ela própria também, oh, muito miserável. Era à beira-mar. As mulheres dos pescadores faziam um percurso ao redor dos barcos, em procissão, empunhando círios e entoando cânticos, decerto muito antigos, de uma tristeza dilacerante. Nada pode dar uma ideia aproximada. Nunca tinha conhecido nada de tão pungente, a não ser o canto dos barqueiros do Volga. Aí tive, repentinamente, a certeza de que o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem senão aderir a ela, e eu entre eles.»
Simone Weil - in Espera de Deus, Carta ao Padre Perrin, em 15 de Maio de 1942