2008/07/29

Cristo e os sacramentos

«As coisas religiosas são coisas sensíveis particulares, que existem neste mundo, e contudo perfeitamente puras. Não pela sua maneira de ser própria. A Igreja pode ser feia, os cânticos desafinados, o padre depravado e os fiéis desatentos. De certa forma, tudo isso não tem qualquer importância. É assim que um geómetra, para ilustrar uma demonstração correcta, traça uma figura na qual as linhas rectas estão tortas e os circulos alongados, o que não tem importância alguma. As coisas religiosas são puras de direito, teoricamente, por hipótese, por definição, por convenção. Assim, a sua pureza é incondicionada. Nenhuma impureza pode atingi-la. É por isso que é perfeita. Mas não perfeita à maneira da égua de Roland, que, com todas as virtudes possíveis, tinha o inconveniente de não existir. As convenções humanas são ineficazes, a menos que se lhes acrescente móbeis que induzam os homens a observá-las. Elas, em si mesmas, são simples abstracções; são irreais e nada operam. Mas a convenção segunda a qual as coisas religiosas são puras é ratificada pelo próprio Deus. Esta é também uma convenção eficaz, uma convenção que encerra uma virtude, que, por ela mesma, opera qualquer coisa. Esta pureza é incondicionada e perfeita, e, ao mesmo tempo, real. (...)
Se não houvesse crime e infelicidade nos séculos mais afastados de nós que dois mil anos, nos países intocados pelas missões, poder-se-ia crer que a Igreja tem o monopólio de Cristo e dos sacramentos. Como é possível, sem acusar Deus, sustentar o pensamento de um único escravo crucificado há vinte e dois séculos, se se pensar que nessa época Cristo estava ausente e que toda a espécie de sacramento era desconhecida? É verdade que quase não pensamos nos escravos crucificados há vinte e dois séculos.»


Simone Weil - in Espera de Deus, Escritos, Formas do Amor implícito a Deus, Amor às Práticas Religiosas