2008/07/16

O mecanismo da natureza humana

«Os Atenienses, em guerra com Esparta, queriam forçar os habitantes da pequena ilha de Melos, aliada de Esparta desde a mais recuada antiguidade e que até aí permanecera neutra, a juntarem-se-lhes. Perante o ultimato ateniense, em vão invocaram os Mélios a justiça, em vão imploraram misericórdia pela antiguidade da sua cidade. Como não quiseram ceder, os Atenienses arrasaram a cidade, deram a morte a todos os homens, venderam como escravos todas as mulheres e crianças.
As linhas que aqui se citam são postas por Tucídides na boca desses Atenienses. Começam por dizer que não irão tentar provar a justiça do seu ultimato.
"Trataremos antes do que é possível... Sabei-lo tal como nós; da forma como o espírito humano é construído, o que é justo é sujeito a exame unicamente quando há necessidade igual de parte a parte. Mas, se há um forte e um fraco, o que é possível é imposto pelo primeiro e aceite pelo segundo". (...)
Quando dois seres humanos têm que fazer juntos, e quando nenhum tem o poder de impor ao outro seja o que for, é necessário que se entendam. Examina-se então a justiça, pois apenas a justiça tem o poder de fazer coincidir duas vontades. Ela é a imagem desse amor que em Deus une o Pai e o Filho, o pensamento comum daqueles que pensam separadamente. Mas quando há um forte e um fraco, não há necessidade nenhuma de unir duas vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se passa como quando um homem manipula a matéria. Não há duas vontades a fazer coincidir. O homem quer e a matéria sujeita-se. O fraco é como uma coisa. Não há qualquer diferença entre atirar uma pedra a um cão incómodo para o afastar e dizer a um escravo: "enxota esse cão".
Há para o inferior, a partir de um certo grau de desigualdade nas relações de força desiguais entre os homens, a passagem ao estado de matéria e perda da personalidade. Os antigos diziam: "Um homem perde metade da sua alma no dia que se torna escravo". (...)
A virtude sobrenatural da justiça consiste, se se é o superior na relação desigual de forças, em conduzir-se exactamente como se houvesse igualdade. Exactamente em todos os aspectos, compreendidos os mínimos detalhes de acento e de atitude, porque um detalhe pode ser suficiente para relançar o inferior no estado de matéria que, nessa ocasião, é naturalmente o seu, tal como o mínimo choque congela a água que abaixo dos zero graus permaneceu líquida.
Essa virtude consiste, para o inferior assim tratado, em não acreditar que haja realmente igualdade de forças, em reconhecer que a generosidade do outro é a única causa desse tratamento. É o que chamamos reconhecimento. Para o inferior tratado de uma outra maneira, a virtude sobrenatural da justiça consiste em compreender que o tratamento que suporta é, por um lado, diferente da justiça, mas, por outro, conforme à necessidade e ao mecanismo da natureza humana. Ele deve permanecer sem submissão e sem revolta. (...)
Cristo ensinou-nos que o amor sobrenatural ao próximo é a troca de compaixão e de gratidão que se produz como um relâmpago entre dois seres, um dotado e outro privado da qualidade de pessoa humana.»


Simone Weil - Espera de Deus, Escritos, Formas do Amor implícito a Deus, O Amor ao Próximo