2008/12/19

A cena do ódio (Fragmentos)

[...]

Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
pra que não se vejam as nódoas de baixo!
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias,
as Políticas, as Artes e as Leis,
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo...
Tu, que aperceiçoas a arte de matar...
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o caminho Marítimo da Índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas terras,
e que trouxeste de lá mais chatos pràqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
pra te chateares também por debaixo de água...
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres...
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!

[...]

E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo,
meu desacreditado burguês apinocado
da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
co'a Felicidade em casa a servir aos dias!
[...]
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio
que Deus perdeu de vista o Adão de Barro
e com pena fez outro de bosta de boi
por lhe faltar o barro e a inspiração!
E enquanto este Adão dormia
os ratos roeram-lhe os miolos,
e das caganitas nasceu a Eva burguesa!

[...]

Hei-de ser a mulher que tu gostes,
hei-de ser Ela sem te dar atenção!

Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!


José de Almada Negreiros