2008/12/29

Reflexões a duas vozes (2)

«Desde essa época até ao momento presente deram-se os acontecimentos mais importantes da minha vida particular. O primeiro foi o meu casamento, em Abril de 1851, com a mulher cujos incomparáveis méritos tinham contribuído através da sua amizade, mais que qualquer outra coisa, para a minha felicidade e para o meu desenvolvimento espiritual, durante os anos em que nenhuns outros laços, além dos dessa amizade, nos uniam. Embora desejássemos a união das nossas existências, de bom grado renunciámos a isso, pois só podiamos alcançá-la com a morte prematura dum homem que eu respeitava sinceramente e a quem ela votava grande afeição. Contudo, essa morte deu-se em Julho de 1849. Nada me impedia de que ligar a minha felicidade a este infeliz acontecimento, acrescentando um novo laço que confundisse as nossas duas existências aos que já existiam de pensamentos, sentimentos e trabalhos literários. Sete anos e meio durou esta minha felicidade. Sete anos e meio somente! Nunca poderia encontrar expressões capazes de exprimir com fidelidade a perda que sofri e o que ela representa ainda hoje para mim. Mas, como sei que seria esse o seu desejo, procuro fazer o melhor uso possível do tempo que me resta para viver, trabalhando no sentido dos seus desígnios, embora com as forças diminuídas pela falta do seu apoio, mas trabalhando em inteira comunhão com a sua memória.



Stuart Mill e a Sra. Taylor Mill

Quando há entre duas pessoas completa comunhão de ideias e de reflexões; quando todos os assuntos que podem interessar o espírito e o coração são discutidos diariamente e perscrutados duma maneira pouco habitual aos autores que escrevem para o grande público; quando essas duas pessoas raciocinam, partindo dos mesmos princípios, chegando às mesmas conclusões e percorrendo o caminho lado a lado - pouco importa, por uma questão de originalidade, saber qual das duas escreveu. Aquela que menos parte toma na execução é talvez aquela a quem mais se deve pelo pensamento. Os escritos que resultam desta colaboração são obra combinada de uma e de outra, e é muitas vezes difícil distinguir o que se deve a cada uma.
Sob este ponto de vista pode-se dizer que, não somente depois do meu casamento, mas também durante os longos anos anteriores a ele, unidos como nos encontravamos pela amizade e pela confiança, tudo o que publiquei é tanto obra minha como de minha mulher. A sua parte crescia de ano para ano. Contudo, em certos casos, pode distinguir-se e reconhecer-se o que lhe pertence. Além da influência geral que o seu espírito exercia sobre o meu, dela vêm as ideias e as características mais importantes destas obras comuns, aquelas que provocaram mais resultados fecundos e consideráveis e que mais contribuiram para o sucesso e reputação das próprias obras. Estas emanavam do seu espírito, e a minha parte era apenas a que podia ter nas ideias doutros autores, de que me apropriava, encorporando-as no meu sistema de ideias.
Durante a maior parte da minha vida literária desempenhei para ela o papel que de há muito considerava o mais útil no domínio do pensamento: o de intérprete de pensadores originais e de mediador entre eles e o público.»


John Stuart Mill - in Memórias