Quando há entre duas pessoas completa comunhão de ideias e de reflexões; quando todos os assuntos que podem interessar o espírito e o coração são discutidos diariamente e perscrutados duma maneira pouco habitual aos autores que escrevem para o grande público; quando essas duas pessoas raciocinam, partindo dos mesmos princípios, chegando às mesmas conclusões e percorrendo o caminho lado a lado - pouco importa, por uma questão de originalidade, saber qual das duas escreveu. Aquela que menos parte toma na execução é talvez aquela a quem mais se deve pelo pensamento. Os escritos que resultam desta colaboração são obra combinada de uma e de outra, e é muitas vezes difícil distinguir o que se deve a cada uma.
Sob este ponto de vista pode-se dizer que, não somente depois do meu casamento, mas também durante os longos anos anteriores a ele, unidos como nos encontravamos pela amizade e pela confiança, tudo o que publiquei é tanto obra minha como de minha mulher. A sua parte crescia de ano para ano. Contudo, em certos casos, pode distinguir-se e reconhecer-se o que lhe pertence. Além da influência geral que o seu espírito exercia sobre o meu, dela vêm as ideias e as características mais importantes destas obras comuns, aquelas que provocaram mais resultados fecundos e consideráveis e que mais contribuiram para o sucesso e reputação das próprias obras. Estas emanavam do seu espírito, e a minha parte era apenas a que podia ter nas ideias doutros autores, de que me apropriava, encorporando-as no meu sistema de ideias.
Durante a maior parte da minha vida literária desempenhei para ela o papel que de há muito considerava o mais útil no domínio do pensamento: o de intérprete de pensadores originais e de mediador entre eles e o público.»
John Stuart Mill - in Memórias