2009/02/20

Necessità

«Maquiavel não nega que as exigências que a moralidade nos coloca sejam absolutas. Ao mesmo tempo afirma que no interesse do Estado o governante "não raro se vê constrangido [necessitato] a agir contra a sua palavra, contra a caridade, a humanidade e a religião.
O tipo de pessoa que telefona para as estações de rádio de antena aberta e justifica o emprego da tortura nos interrogatórios de prisioneiros pensa exactamente seguindo os mesmos dois pesos e duas medidas: sem negar de forma alguma as exigências absolutas da ética cristã (ama o teu próximo como a ti mesmo), uma tal pessoa concorda que se dê carta branca às autoridades - ao exército, à polícia secreta - para fazerem o que for necessário a fim de proteger o público dos inimigos do Estado.
A reacção típica dos intelectuais liberais é agarrarem-se à contradição aqui existente: como pode alguma coisa ser ao mesmo tempo certa e errada, ou pelo menos errada e aceitável? O que os intelectuais liberais não vêem é que esta pretensa contradição exprime a quinta-essência do maquiavélico e por conseguinte do moderno, uma quinta-essência que foi integralmente absorvida pelo homem comum. O mundo é governado pela necessidade, diz o homem comum, e não por qualquer código moral abstracto. Temos de fazer o que é preciso fazermos.
Se quisermos contraditar o homem comum, não o podemos fazer apelando aos princípios morais, e muito menos exigindo que as pessoas devem governar a sua vida de tal forma que não haja contradições entre o que dizem e o que fazem. A vida vulgar está cheia de contradições; as pessoas vulgares estão habituadas a aceitá-las. Ao invés, deve atacar-se a condição metafísica, supra-empírica de necessità e mostrar que ela é fraudulenta.»


J.M. Coetzee - in Diário de um mau ano