2007/12/18

KROTKAIA

«Nem se trata, com efeito, nem de uma novela nem de memórias. Imaginem um homem que tem em sua casa, estendido numa mesa, o cadáver da mulher que acaba de se suicidar, não há muito tempo, precipitando-se da janela. Tal homem, esmagado pela emoção, ainda não teve tempo, sequer, de vir a si. Erra de quarto em quarto, procurando evocar o que se passou, procurando "concentrar os seus pensamentos num ponto". Demais, esse homem é um hipocondríaco inveterado, um desses homens que se afundam em solilóquios. Fala, portanto, consigo próprio, repisa os factos, esforça-se por explicá-los. Apesar da continuidade aparente da narração, esbarra a cada passo com contradições tanto em matéria de lógica como de sentimento. Justifica-se, acusa-se, perde-se em falsas interpretações: a isto vem juntar-se uma certa rudeza de pensamento e de sensibilidade ao mesmo tempo que um sentimento profundo. Pouco a pouco vai-se realmente explicando a si mesmo o que se passou, "acaba por concentrar os seus pensamentos num só ponto". Uma série de recordações evocadas leva-o à verdade: a verdade exalta-lhe o espírito e o coração, inefavelmente. Perto do fim o próprio tom da narração modifica-se, se o compararmos com a desordem do princípio. A verdade revela ao desgraçado assaz clara e nítida, pelo menos a ele...
Eis o tema. (...)»


Dostoievski - in Está morta!, Exórdio pelo Autor.