2008/02/07

Criação (outra)

«O nosso amigo Cleanto, respondeu Fílon, afirma, como ouviste que como qualquer questão de facto só pode ser provada pela experiência, a existência de uma Divindade não admite prova por qualquer outro meio. O mundo, diz ele, assemelha-se aos trabalhos do engenheiro humano, por isso a sua causa deve igualmente assemelhar-se à causa destes outros. Aqui podemos notar que a operação de uma pequeníssima parte da natureza, a saber, o homem, sobre outra pequeníssima parte da natureza, a saber, aquela matéria inanimada que se encontra ao seu alcance, é a regra pela qual Cleanto ajuíza da origem do todo; e mede objectos, tão amplamente desproporcionados, pelo mesmo padrão particular. Mas, para pôr de parte todas as objecções esquematizadas a partir deste tópico, afirmo que há outras partes do universo (para além das máquinas de invenção humana) que apresentam uma maior semelhança com a estrutura do mundo e que, por conseguinte, permitem uma melhor conjectura acerca da origem universal deste sistema. Estas partes são os animais e os vegetais. O mundo assemelha-se mais a um animal, ou a um vegetal, do que a um relógio ou um tear. A sua causa, portanto, é o que é mais provável, assemelhar-se à causa dos primeiros. A causa dos fenómenos referidos é a geração ou a vegetação. Por isso podemos inferir ser a causa do mundo similar ou análoga à geração ou vegetação.

(...)

Na realidade, Demea, pode razoavelmente esperar-se que quanto mais alargadas forem as perspectivas que formamos sobre as coisas, melhor nos conduzem nas nossas investigações acerca de assuntos tão extraordinários e magnificientes. Só nesta pequena parte do mundo há quatro princípios, razão, instinto, geração, vegetação, que são semelhantes uns aos outros e que são causas de efeitos semelhantes. Que número de outros princípios poderíamos supor na imensa extensão e variedade do universo se pudéssemos viajar de planeta para planeta, e de sistema para sistema, no sentido de examinar cada parte desta poderosa estrutura? Qualquer um destes quatro princípios acima referidos (e uma centena de outros que permanecem abertos às nossas conjecturas) pode-nos dar uma teoria pela qual podemos ajuizar sobre a origem do mundo e é de uma óbvia e enorme parcialidade circunscrever a nossa perspectiva àquele princípio pelo qual operam as nossas mentes. Fosse este princípio mais inteligível nessa explicação e essa parcialidade poderia ser desculpada; mas a razão, na sua interna contextura e estrutura, é realmente tão pouco conhecida por nós como o instinto, ou a vegetação; e talvez mesmo essa vaga, indeterminada palavra natureza, para a qual as pessoas comuns referem tudo, não seja, no fundo, mais inexplicável. Os efeitos destes princípios são todos conhecidos por nós através da experiência, mas os próprios princípios e a sua forma de operar são totalmente desconhecidos; nem é menos inteligível nem menos conforme à experiência dizer que o mundo surgiu através da vegetação, de uma semente lançada de outro mundo, do que dizer que surgiu de um engenho ou razão divinos, de acordo com o sentido em que Cleanto o entende.»


David Hume - in Diálogos sobre a Religião Natural, Parte VII