2008/03/27

Maniqueísmos à parte

A propósito de discussões havidas, este post segue com dedicatória:

«- Deve ser difícil escrever uma biografia tão complexa.
- Na realidade, é fascinante... excepto num aspecto. - Meditou numa coisa que estava no seu pensamento havia muito tempo e sentiu vontade de dar-lhe voz. - Sim, suponho que num aspecto foi difícil - admitiu, dirigindo-se principalmente a Foster. - Quando uma pessoa se envolve tanto nas minúcias da vida de outra, há o perigo de pensar nessa pessoa como um ser humano, como ela própria. Sabemos que este homem foi uma fera desumana e terrível. Sabemos o que ele fez, realmente, a outras pessoas enquanto viveu. Tentamos conciliar a verdade das suas actividades com os factos normais de uma vida que descobrimos. E não conseguimos porque somos incapazes de conciliar as enormes contradições existentes num ser.
Sabemos, como um facto, que os Vernichtungslager, de Hitler, existiram. Os campos de extermínio. Auschwitz, Bunchenwald, Dachau, Mauthausen, Treblinka, trinta campos de morte nazis, ao todo. Sabemos o que se passou em Auschwitz, o mais eficiente, com as suas quatro grandes câmaras de morte, duas mil vitimas nuas e desamparadas sufocando e estrebuchando nas vascas da agonia em cada uma das câmaras, todos os dias, e sendo depois arrastadas para lhes serem tirados os anéis e arrancadas as próteses dentárias de ouro, a fim de serem depositados no Reichsbank, e os crematórios lhes queimarem os corpos e as suas cinzas serem vendidas como fertilizantes. Os seis milhões de judeus e outros gaseados até à morte e pasto das chamas, os vinte milhões de pessoas - de pessoas verdadeiras, de carne e osso - que por sua culpa foram mortas durante a II Guerra Mundial, a sua absoluta e cruel desconsideração pelos sofrimentos dos seus próprios partidários, como os milhares que consentiu que morressem afogados quando inundou as passagens do metropolitano de Berlim, e os milhões de soldados cuja mutilação ou morte a tiro permitiu nos dezasseis dias de defesa absolutamente inútil da capital. Tudo isso foi obra de Adolf Hitler e de mais ninguém.
Distraidamente, cortou um pedaço de bife, mas deixou-o no prato, para fitar de novo os olhos atentos de Foster.
- No entanto, ao escrever uma biografia tão minuciosa de um homem, um close-up tão absoluto, somos apanhados na teia do seu comportamento e nas suas fraquezas normalmente humanas. Ficamos confusos com este homem que gostava de lobos-de-alsácia e dos filhos pequenos de outras pessoas, este vegetariano e não fumador, este homem que se recusava a usar pijama e só usava camisas de dormir, este homem que adorava a mãe e via e revia e apreciava filmes como It Happened One Night. Ficamos confusos porque esta besta humana também tinha vulnerabilidade humana, tremia-lhe a mão e o braço esquerdos, ia perdendo a visão do olho direito, tomava todos aqueles remédios para a doença de Parkingson...
Emily parou um momento para tomar fôlego e continuou:
- Temos dificuldade em compreender outra contradição: a sua atenção para com os pormenores femininos de Eva Braun. Gostava de ter relações sexuais com ela e fazia-lhe amor sempre que não estava demasiado exausto ou doente. A sua terna Eva, a quem não consentia que praticasse esqui porque poderia partir uma perna, ou que tomasse banhos de sol para não contrair cancro na pele. A sua terna Eva, que gostava de ouvir "Chá para dois" e usar o relógio de pulso de platina com diamantes que ele lhe dera, e cintos de ligas de seda pura, e o perfume Air Bleu da Worth que ele confiscara à conquistada Paris.
Emily abanou a cabeça e continuou:
- Todos estes microscópicos factos humanos de um lado. E, todavia, do outro, todos aqueles seis milhões de homens, mulheres e crianças que ele condenou a serem totalmente despidos e gaseados - cada um deles uma mãe, um pai, uma filha, um filho, um neto ou uma neta que queriam viver mais tempo e gozar a vida, mas cada um deles assassinado, até que, finalmente - finalmente! - o derramamento de sangue foi estancado por milhões de pessoas melhores e mais decentes do que Hitler, pessoas que sacrificaram anos, que sacrificaram até a própria vida, para o apagar da face da terra.
Olhou fixamente para Foster.
- Desculpe Rex... desculpe, Tovah, desculpem ter-me deixado arrebatar assim. Mas vocês perguntaram e eu tive de responder. Foi essa a dificuldade de escrever este livro. (...)»


Irving Wallace - in O Sétimo Segredo