2008/06/14

A infelicidade (I)

"A infelicidade é um desenraizamento da vida, um equivalente mais ou menos atenuado da morte, feita irresistivelmente presente à alma pelo golpe da dor física ou pela angústia que lhe é contígua. (...)
Só há verdadeiramente infelicidade quando o acontecimento que colheu uma vida e a desenraizou a atinge, directa ou indirectamente, em todas as suas partes, sociais, psicológicas, físicas. O factor social é essencial. Não há verdadeiramente infelicidade onde não há, de alguma forma, degradação social ou a angústia de uma tal degradação.
Entre a infelicidade e todos os desgostos que, embora muito violentos, muito profundos, muito prolongados, são outra coisa diferente da infelicidade propriamente dita, existe, ao mesmo tempo, continuidade e a separação de um limiar, como para a temperatura de ebulição da água. Há um limite para além do qual se encontra a infelicidade e não aquém. Esse limite não é puramente objectivo; toda a espécie de factores pessoais entra em consideração. O mesmo acontecimento pode precipitar este ser humano na infelicidade e não aquele outro.
O grande enigma da vida humana não é o sofrimento, é a infelicidade. Não é surpreendente que inocentes sejam mortos, torturados, escorraçados dos seus países, reduzidos à miséria ou à escravidão, fechados em campos de concentração ou em calabouços, pois existem criminosos para levar a cabo essas acções. Nem é surpreendente que a doença imponha prolongados sofrimentos que paralisam a vida e dela compõem uma imagem da morte, pois a natureza está submetida a um jogo cego de necessidades mecânicas. Mas é surpreendente que Deus tenha dado à infelicidade a faculdade de se apoderar da própria alma dos inocentes e dela se assenhorear como um mestre soberano. No melhor dos casos, aquele que a infelicidade marca não conservará senão metade a sua alma. (...)
A infelicidade endurece e desespera porque imprime até ao fundo da alma, como um ferro em brasa, esse desespero, essa aversão e mesmo essa repugnância de si mesmo, essa sensação de culpabilidade e de mancha que o crime deveria logicamente produzir e não produz. O mal habita a alma do criminoso sem que este o sinta. Quem o sente é a alma do inocente infeliz. Tudo se passa como se o estado de alma que por essência convém ao criminoso tivesse sido separado do crime e ligado à infelicidade; e até mesmo na proporção da inocência dos infelizes."


Simone Weil - in Espera de Deus, Escritos, Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do Amor a Deus