2008/06/14

A infelicidade (II)

"Um outro efeito da infelicidade é o de fazer da alma, pouco a pouco, sua cúmplice, injectando-lhe um veneno de inércia. Em todo aquele que tenha sido infeliz o tempo suficiente há uma cumplicidade com a própria infelicidade. Esta cumplicidade trava todos os esforços que poderiam fazer melhorar a sua sorte; vai ao ponto de lhe impedir a procura de meios de libertação, por vezes mesmo ao ponto de lhe impedir o desejo de libertação. Encontra-se então instalado na infelicidade, e as pessoas podem acreditar que está satisfeito. Mais, esta cumplicidade pode impedi-lo, a despeito de si próprio, a evitar, a fugir aos meios de libertação; ela esconde-se então debaixo de pretextos por vezes ridículos. Mesmo naquele que saiu da infelicidade, se foi mordido para sempre até ao fundo da alma, subsiste qualquer coisa que o leva a lançar-se nela de novo, como se a infelicidade nele estivesse instalada à maneira de um parasita e o dirigisse de acordo com os seus próprios fins. Por vezes, este impulso leva a melhor sobre todos os movimentos da alma dirigidos para a felicidade. Se a infelicidade findou por causa de um favor, ela pode ser acompanhada de ódio contra o benfeitor; é essa a causa de certos actos de ingratidão selvagem aparentemente inexplicáveis. Por vezes, é fácil libertar um infeliz da sua infelicidade presente, mas é difícil libertá-lo da sua infelicidade passada. Só Deus pode. Nem mesmo a própria graça de Deus sara, neste mundo, a natureza irremediavelmente ferida. O corpo glorioso de Cristo exibia as chagas."


Simone Weil - in Espera de Deus, Escritos, Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolaes em vista do Amor de Deus