2008/12/10

Comte

«Estava plenamente de acordo com ele que a grande massa da humanidade, incluindo os que a governam, deve necessariamente ser dirigida, nos problemas políticos e sociais, da mesma forma que nos assuntos de física; isto é: deve haver autoridades em ciências políticas e sociais como há em física. Esta maneira de pensar muito me impressionou, quando li a primeira obra de Comte. Nada admirava mais, na sua grande obra, que a notável exposição dos benefícios que as nações da Europa moderna tiveram com a separação, na Idade Média, dos poderes temporal e espiritual, e da organização deste último como poder distinto. Admitia, como ele, que o ascendente moral e intelectual, mantido outrora pelo clero, deve passar, com o tempo, para as mãos dos filósofos; e creio que isto sucederá quando estiverem de acordo entre si e quando, nos outros pontos de vista, forem dignos de o possuir. Mas, vendo que ele procurava arrancar destas ideias um sistema social prático, em que os filósofos seriam organizados hierarquicamente, sendo-lhes quase dada a mesma supremacia espiritual que possuia outrora a Igreja católica; quando vi que ele considerava esta autoridade espiritual como a garantia única de um bom governo, único centro de resistência da sociedade contra a opressão real, e esperava desta instituição que o Despotismo de Estado (assim como aquele que criou na organização da família) se tornasse inofensivo e até proveitoso - não me admirei que, embora quase de acordo como lógicos, nos fosse impossível continuar lado a lado como sociólogos. Comte ainda viveu o bastante para levar as suas doutrinas até às últimas consequências no seu Sisteme de Politique Positive. É esta a organização mais completa do despotismo espiritual e temporal que jamais saiu do cérebro humano, com excepção talvez do de Inácio de Loyola. (...) Mas o livro de Comte é o típico exemplo do que pode suceder a qualquer pensador que se ocupe de questões sociais e políticas, quando perde de vista o valor da liberdade e da individualidade.»


John Stuart Mill - in Memórias